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O homicídio privilegiado como estratégia de quase liberdade do acusado no júri


A eleição e articulação de teses defensivas no exercício da advocacia criminal é, inexoravelmente, uma estratégia de muita responsabilidade ao patrono da causa, sabido que a escolha desse caminho poderá significar o sucesso da causa ou seu completo fiasco, independente de a causa ser boa ou ruim, uma vez que, diferentemente do que vociferam alguns incautos, por pior que seja a causa, o defensor vocacionado e que faz da sua profissão um prazer e não um dever, será frequentemente notado no fórum e tribunais, especialmente por seus pares, o que coroará ainda mais a sua estirpe de defensor nato, jocosamente como uma babá que gosta de bebê, ou seja, babá que cuida bem do bebê simplesmente porque gosta dele e não porque tem conta para pagar no final do mês!
Essa escolha de teses defensivas, sempre com a participação do réu, será ainda mais crucial no plenário de júri, onde vigora a plenitude de defesa, leia-se, a defesa técnica, a autodefesa e a defesa extralegal, diante dos sete jurados, o juiz presidente e a própria acusação oficial, o MP, de forma que todo cuidado será pouco, eis assim que vários serão os protagonistas do cenário quase fúnebre que é o plenário de julgamento, com uso de vestes talares pretas, alguns com semblantes sisudos e às vezes professorais, tudo que cheirando um pouco a defunto!
Avançando um pouco depois dessas impressões pessoais, temos que o nosso cliente, o acusado, deseja livrar-se daquilo tudo o mais rapidamente, conquistando se possível a absolvição ou quando não um resultado que possa colocá-lo o mais próximo possível da tão sonhada liberdade. Uma das teses defensivas que, embora não absolva o réu, pode levá-lo à quase liberdade ou por que não dizer liberdade, apesar de ter sido condenado no júri, é inquestionavelmente o denominado homicídio privilegiado ou simplesmente causa especial de diminuição de pena, prevista no art. 121, §1º do CP, formada por três figuras de natureza subjetiva, a saber: relevante valor social, relevante valor moral e domínio de violenta emoção logo em seguida à injusta provocação da vítima.
Um exemplo prático dirá mais que mil palavras e será muito mais útil ao nosso leitor. “A” é levado ao plenário de júri como incurso no art. 121, §2º, II do CP (homicídio doloso consumado e qualificado pelo motivo fútil). É primário e de bons antecedentes. O MP deseja sua cabeça, isto é, deseja a imposição de uma pena de pelo menos doze anos de reclusão, no regime inicialmente fechado, tendo que cumprir, no caso de condenação, pelo menos dois quintos dessa pena para ter direito a progredir ao regime prisional semiaberto e depois o cumprimento da mesma fração para conquistar o regime aberto, se tudo navegar, claro, em mar de almirante ou céu de brigadeiro!
Se a defesa utilizar nesse caso o homicídio privilegiado, sem prejuízo de também poder utilizar uma tese absolutória, como de ter estado o réu sob o domínio de violenta emoção na prática do crime, argumentando, apenas para exemplificar, que a vítima lhe chamou de “corno” e “viado” em presença de parentes e amigos, convencendo-se os jurados dessa assertiva e acolhendo por maioria de votos esse privilégio, teremos que a qualificadora de futilidade cairá por terra, isto é, será sangrada de morte, restando a votação de seu respectivo quesito prejudicado. Por quê? As três figuras privilegiadoras antes mencionadas e dispostas no art. 121, § 1º do CP, guardam a natureza subjetiva, isto é, diz respeito exclusivamente a um determinado acusado que tenha praticado esse homicídio privilegiado, qual seja, diz respeito ao motivo, à razão do crime, inquestionavelmente portanto pessoal, afastando dessa maneira outro motivo subjetivo que o tivesse impulsionado, em outras palavras, o homicídio privilegiado, por quesito próprio, é submetido à soberana votação dos jurados em primeiro lugar no questionário, antes assim dos quesitos relativos às qualificadoras do art. 121, §2º do CP, como acontece com a futilidade, de sorte que, reconhecido pelos jurados e antes o privilégio, esta motivação irá sobrepujar, preponderar sobre outra circunstância de natureza subjetiva (art. 67 do CP), como acontece com as qualificadoras dos incisos I, II, V, VI e VII do §2º do art. 121 do CP, as quais, a nosso ver, guardam natureza subjetiva.
Desse modo, continuando no exemplo anteriormente mencionado, reconhecido pelos jurados o privilégio, não se vota a qualificadora de futilidade, restando apenas um homicídio doloso simples. No caso em tela, sendo “A” primário e de bons antecedentes, com as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP favoráveis, experimentará de regra a pena mínima de seis anos de reclusão.   O juiz presidente do júri ainda deverá diminuir essa pena em regra na sua fração máxima de um terço pelo privilegio, quando teremos ao final uma pena de quatro anos de reclusão, a ser cumprida no regime prisional aberto. Se na comarca não existir estabelecimento prisional adequado para o cumprimento dessa pena que é a casa do albergado, o juiz então, afastando qualquer constrangimento ao réu, irá aplicar a ele a denominada prisão albergue domiciliar, por analogia in bonam partem do disposto no art. 117 da LEP (Lei de Execução Penal nº 7.210/84), enfim, uma quase liberdade ou por que não dizer liberdade.
Em conclusão, podemos evocar aqui o grande tribuno norte americano Clarence Darrow, o qual vaticinava que não é preciso defender bonito, mas defender útil. O cliente deseja resultado e não discurso gongórico, verborragia ou ainda fazer do seu caso uma fogueira das vaidades!

Romualdo Sanches Calvo Filho
Advogado criminalista, professor de direito e processo penal e presidente da APDCrim, com mais de 30 anos de experiência em plenários de júri de todo o Brasil.

Rômulo Augusto Sanches Calvo
Advogado criminalista e pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Mackenzie, com capacitação docente.

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