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A decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos e a soberania dos seus veredictos


Diferentemente do que acontece no direito constitucional, onde o significado de soberania tem a sua merecida interpretação, como sendo aquele poder único e incontrastável e que portanto não pode ser ofuscado, abalado, minimizado, apequenado, isso não ocorre no procedimento do tribunal do júri, onde essa mesma soberania elencada no art. 5º, XXXVIII, “c” da CF, sofre alguma baixa, restrição, uma vez que se argumenta, entre outros, que referida soberania do júri não poderia sobrepujar o direito a que tem todo o réu de recorrer de sentença condenatória a outro juiz ou tribunal, consoante estabelece a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos no seu art. 8ª, 2, ”h”, o qual tem ancoras no próprio texto constitucional por ter sido agasalhado por ele no Decreto nª 672/1998.
            Sem prejuízo de descordarmos visceralmente desse entendimento que apequena essa soberania popular, ainda que em rota de colisão com o entendimento majoritário, a verdade é que as decisões promanadas do colegiado popular na segunda fase do júri, o plenário de julgamento, por meio dos sete cidadãos leigos, os jurados, é limitado também pelo art. 593, III, “d” e seu §3ª da lei de regência penal.
            Dessa forma, exemplificando, se o réu “a” é submetido a julgamento pela prática de homicídio, sendo condenado pelo conselho de sentença, poderá a defesa interpor recurso de apelação com fundamento de ter sido a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, “d” do CPP), ocorrendo que, o juízo ad quem , o órgão recursal, se der provimento ao recurso, isto é, concordar com a defesa no sentido de que esse réu foi condenado com base em prova manifestamente contrária À dos autos, o máximo que poderá fazer é cassar ou anular essa decisão (preferimos o termo cassar, eis que anular se refere a alguma nulidade), remetendo o réu a novo júri, contudo, somente por uma vez (art. 593, III, §3º CPP), independente  de quem primeiro tenha se usado dessa fundamentação no recurso de apelação, ou seja, não importa qual das partes processuais- acusação ou defesa-, tenha manejado o recurso de apelação com base o art. 593, III, “d” , eis que ainda assim, a decisão dos jurados quanto ao mérito só poderá ser cassada por uma única  vez, sem qualquer exceção.
            Explicando melhor e tomando ainda esse exemplo, digamos que o réu, submetido agora a novo júri por conta da cassação do primeiro julgamento que o condenou, seja agora absolvido. Poderá então o promotor interpor recurso de apelação contra essa absolvição, valendo-se do art. 593, III, “d” do CPP? A resposta não é de rigor, considerando que já anteriormente a defesa tinha obtido a cassação da decisão dos jurados que tinha condenado o réu, e com base no art. 593, III, “d” do CPP, de maneira que não poderia agora o MP tentar cassar a decisão absolutória, uma vez que a decisão dos jurados só pode ser cassada por apenas uma única vez, pouco importando, repise-se, quem primeiro tenha conseguido cassar ou julgar sem efeito a primeira decisão oriunda do conselho de sentença. Claro que não a limite de vezes para interpor recurso de apelação por conta de alguma nulidade, aí em sentido estrito (art. 593, III, “a” do CPP), certo que a limitação para submeter o réu a novo júri por uma única vez, diz respeito apenas à decisão de mérito, oriunda deste modo dos jurados, culpado ou inocente.
            Por outro viés, quando é que uma decisão oriunda dos jurados pode ser considerada manifestamente contrária à prova dos autos? A questão não é simples e seguramente não temos a pretensão de esgotar celestialmente nessas poucas linhas essa questão que atormenta por décadas os operadores do direito, mormente aqueles que militam na seara do tribunal do júri.
            Com efeito, para que o órgão recursal opte pela cassação da soberana decisão proveniente dos jurados, não basta que a prova admitida, em tese, por eles, jurados, seja contrária à prova dos autos, divergente do quadro probatório, oposta à decisão eleita pelo conselho de sentença. É preciso um pouco mais. É necessário que tenhamos um componente a mais, o adverbio manifestamente, de tal sorte assim que a decisão tenha sido manifestamente contrária à prova dos autos. Trocando em miúdos, a decisão deve ser caprichosa, teratológica, absurda, que dói nos olhos, divorciada da realidade do caderno probatório, enfim, o manifestamente aí quer dizer uma decisão prepotente, arbitrária, numa espécie de abuso de poder, tirânica!
            Ilustrando essa problemática, augurando sermos felizes no exemplo, imaginemos que “a” seja absolvido pelo júri pela prática de homicídio qualificado, com amparo na legítima defesa. A prova dessa excludente de ilicitude, na essência, consiste na própria autodefesa do réu, qual sempre firmou ter agido em legítima defesa, mais o depoimento de sua mulher, a qual corrobora a versão de seu marido e réu, uma vez presente na cena delitiva. Existem duas testemunhas presenciais e amigas da vítima fatal, as quais afirmam diferentemente do que informou o réu e sua mulher, asseverando que na verdade foi o réu quem provocou a vítima e lhe desfechou golpe de faca. O MP no seu recurso de apelação busca a cassação do julgado, argumentando que a decisão foi manifestamente contrária à prova dos autos. A defesa argumenta que a prova dos autos até poderia ser contrária, uma vez que as duas testemunhas, se bem que amigas da vítima, informam que foi o réu que iniciou a agressão e não a vítima, embora também o réu sempre tenha mantido a mesma versão, desde a polícia, mesmo acontecendo com o depoimento de sua mulher, de maneira que não estamos diante de uma prova manifestamente  contrária a prova dos autos, caprichosa, arbitraria, tirânica, mas quando muito apenas contrária, o que não autoriza a cassação do julgado, principalmente em razão de ter os jurados eleito uma das versões oferecidas nos autos criminais, pouco importando seja essa versão a melhor ou a pior, uma vez que dentro do poder soberano dos jurados , de modo que merece ser dado improvimento ao recurso do MP, mantendo-se a soberana decisão absolutória do conselho de sentença.
            Percebe-se assim que dirimir essa questão é simples, porém, não é fácil! contudo, o importante é que tenhamos em mente que, caso o órgão recursal entenda por cassar a decisão dos jurados que  absolveu nosso cliente, o acusado, será sempre interessante discutirmos isso em terceiro ou até quarto graus, leia-se, ingressar com ordem de habeas corpus primeiramente perante o STJ, objetivando a manutenção da soberana decisão absolutória popular e, se for ainda o caso, na situação de denegação dessa ordem, prosseguirmos com RHC ou simplesmente ROC, para o STF, como já algumas vezes ocorreu conosco aqui no escritório, sucedendo que Brasília manteve a decisão absolutória e soberana dos jurados.
           
Romualdo Sanches Calvo Filho
Advogado criminalista, professor de direito e processo penal e presidente da APDCrim, com mais de 30 anos de experiência em plenários de júri de todo o Brasil.

Rômulo Augusto Sanches Calvo
Advogado criminalista e pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Mackenzie.

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