Questão
espinhosa em que nos vimos recentemente envolvidos diz respeito a um caso de
júri que ingressou em nosso escritório. “A” e “b”, respectivamente, enteado e
padrasto, foram denunciados perante o tribunal do júri e ao depois pronunciados
por ter o primeiro matado a vítima mediante disparo de arma de fogo e tentado matar
a namorada da mesma vítima, enquanto que o segundo, o padrasto, teria
participado desse homicídio consumado e tentado, na medida em que teria
fornecido apoio moral e material para “a”.
No plenário de júri, empolgamos a
favor do réu “a”, entre outras, as teses de legitima defesa e privilégio e, no
tocante ao réu “b”, sustentamos a tese de negativa de participação pura e simples.
A instrução probatória foi bem
disputada e os ânimos das partes processuais estavam bem acirrados,
explorando-se pau a pau cada brecha que surgisse para corroborar os argumentos
invocados perante o conselho de sentença. Encerrados os debates, a juíza
presidente indagou se os jurados estavam aptos para julgar o caso, no que foi
respondido positivamente, quando foi lido em público o questionário que deveria
ser logo mais respondido sigilosamente pelos sete juízes leigos na sala
especial, não existindo nenhum requerimento ou reclamação das partes acerca da
elaboração desse questionário.
Já todos presentes nessa sala, foi lido e
explicado cada quesito ou pergunta aos sete jurados, de maneira que pudessem
eles votar de acordo com a sua livre convicção intima, manifestando assim a
soberana decisão popular.
Foram elaboradas duas seriações
autônomas para cada um dos dois réus, versando a primeira seriação sobre o
homicídio consumado e a segunda sobre o homicídio tentado. A votação iniciou-se
com o réu “a”, tendo os jurados condenado esse réu nas duas seriações, isto é,
ele foi condenado tanto por homicídio consumado quanto pelo tentado. Na
sequência, iniciou-se a votação com relação ao acusado “b”, acontecendo que os
jurados absolveram-no do homicídio consumado da primeira seriação, porém,
condenando-o em tentativa de homicídio na segunda seriação, momento em que a
Sra. juíza presidente vociferou que a resposta dos jurados ao quesito da
segunda seriação e que reconhecia a participação de “b” no crime, era contraditória, uma vez que eles tinham
absolvido esse mesmo réu na seriação anterior e relativa ao homicídio
consumado, de maneira que ela, juíza presidente, iria repetir não só a segunda seriação, mas também a primeira, na qual
os jurados já tinham anteriormente absolvido o réu “b” de forma soberana!
Sem muito esperar, protestamos energicamente
contra aquele estado de coisas, argumentando que os réus eram diferentes, as
vítimas igualmente diferentes, bem como as seriações, de modo que uma suposta
ou eventual contradição dos jurados em relação a uma das seriações, não poderia
comprometer uma outra completamente individual, autônoma e distinta, sob pena
de se afrontar a soberania popular dos veredictos! Nada obstante, tudo foi
debalde, eis que a juíza casmurra insistiu em concretizar aquela equivocada e
maléfica postura, haja vista que ao repetir as votações da primeira e segunda
seriações, respectivamente, dos homicídios consumado e tentado, os jurados
desta vez entenderam por acolher a participação de “b” nos dois crimes, gerando
total perplexidade na defesa e estupefação em outras, tendo sido tudo objeto de
registro em ata!
Interpusemos dessa decisão recurso
de apelação, suscitando em preliminar a nulidade da votação, uma vez que malferida
a soberania popular dos jurados.
Com efeito, duas eram as seriações,
bem como duas eram as vítimas, existindo dois réus, um como autor e outro como
partícipe. Assim, o fato de os jurados terem entendido que somente o réu “a”
deu ensejo à prática do homicídio consumado e tentado, mas que o réu “b” só deu
causa à prática do homicídio tentado e não consumado, por si só, não induz
necessariamente qualquer contradição, eis que os jurados gozam da soberania de
seus veredictos, sem contar que a suposta contradição apontada só poderia dizer
respeito a um determinado quesito de uma seriação, mas jamais de um quesito em relação a uma outra seriação já votada e
muito menos do resultado de uma seriação em face de uma outra.
Deveras, a letra do art. 490 do CPP
é muito clara a respeito. Eventual quesito ou pergunta respondida em
contradição com outra anteriormente respondida dentro da mesma seriação, poderá
implicar simplesmente na repetição de votação unicamente desse quesito que se acoima de contraditório e não do quesito anterior, sem também, em
qualquer hipótese, submeter a uma nova votação a seriação ou algum de seus
quesitos já soberanamente decididos em votação anterior.
Dessa maneira, a partir do momento
em que os jurados absolveram na primeira e autônoma seriação o réu “b” da
prática de homicídio consumado, encerrando-se a votação dessa seriação e
partindo-se para a segunda seriação, a qual tratou do homicídio tentado, o
máximo que a juíza presidente poderia fazer nesta segunda seriação, caso
persistisse entender a ocorrência de alguma contradição, seria limitadamente
submeter a uma nova votação aquele único quesito gerador da suposta contradição
e não absolutamente colocar em nova
votação algum outro quesito anterior e da mesma seriação ou ainda, bem pior,
como foi no caso, submeter novamente à votação todos os quesitos da primeira seriação onde o réu “b” já tinha sido
soberanamente absolvido, bem como e também repetindo a votação dos quesitos da
segunda seriação, culminando na condenação dele tanto por homicídio consumado
quanto tentado, no prejuízo escancarado, palmar, elementar, certo que se
desprezou à toda evidencia a soberana decisão dos jurados que absolveu o réu
“b” do homicídio consumado!
Caso o MP entendesse, por exemplo,
que as provas para a condenação do réu “a” eram exatamente iguais para se obter
a condenação também do réu “b”, então caberia ao parquet e unicamente a
ele e mais ninguém, manejar recurso de apelação argumentando ter sido a decisão
absolutória de “b”, pelo crime consumado manifestamente contrária à prova dos
autos!
Acresça-se a esse horror o detalhe
de que essa suposta contradição foi noticiada de viva-voz pela senhora juíza
presidente em alto e bom som, parecendo-nos não ter restado qualquer dúvida aos
jurados de que a absolvição do réu “b” na seriação anterior pelo homicídio
consumado, tinha sido seguramente um desacerto
e tanto era assim que ela, além de anunciar com estardalhaço esse pensamento
errático, submeteu aquela primeira seriação à nova votação, enfim, nada é tão
ruim que não possa ser processualmente piorado! Durma-se com um barulho desses!
Romualdo
Saches Calvo Filho
Advogado
criminalista, professor de direito e processo penal e presidente da APDCrim.
Rômulo
Augusto Sanches Calvo
Advogado
criminalista e pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Mackenzie, com capacitação
docente.
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