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Teses defensivas aparentemente conflitantes no Plenário de Júri


Tema que desperta muito a atenção daqueles que militam na advocacia criminal em geral é de se saber se é possível esboçar a favor do cliente e acusado mais de uma tese defensiva, especialmente quando existe colisão, conflitância ou colidência entre elas, uma vez que quando as teses guardam coerência entre si, a matéria então resta tranquila e escapa do objetivo do nosso tema em questão.

            Assim, por exemplo, num crime de roubo posso como defensor utilizar as teses de desclassificação de crime consumado para tentado, afastamento de uma ou mais causas de aumento de pena etc. Ainda em outro exemplo, num crime de homicídio, posso empolgar as teses de legitima defesa, homicídio privilegiado, afastamento das qualificadoras etc. Nesses dois casos, o mais comum no dia-a-dia forense é que os acusados tenham à primeira vista confessado a autoria ou participação delitivas, obviamente quando for o caso, ocasião então se conferiria, digamos, mais credibilidade à defesa técnica e também à auto defesa, independente do sucesso ou não das teses eleitas, enfim, a assunção da autoria ou participação não tornaria outra ou outras teses manejadas pela defesa incompatíveis ou antagônicas entre si, eis que, ainda valendo-me dos dois exemplos anteriores, o pressuposto, ao menos no primeiro momento, para se requerer a desclassificação de roubo consumado para tentado ou mesmo o homicídio privilegiado e afastamento das qualificadoras, pressupõem-se a admissão daquelas condutas por parte do increpado ou acusado.

            Claro que no juízo criminal singular, incluindo a primeira fase do procedimento especial do júri, a questão está superada, isto é, é perfeitamente admissível que a defesa ostente duas ou mais teses defensivas, de modo alternado, ainda que se afigurem numa primeira ocasião colidentes ou conflitantes entre si, certo que deve vigorar o princípio constitucional da ampla defesa, disposta no art. 5º, LV da CF, devendo assim os juízes apreciarem cada tese defensiva invocada de maneira fundamentada.

            Entretanto, o tema ora suscitado não fica tão simples assim de ser solucionado quando ingressamos na peculiar seara do tribunal do júri, nomeadamente na sua segunda fase, também denominado judicium causae ou juízo da causa ou do mérito, cujo desfecho de absolvição ou condenação provêm necessariamente do colegiado popular, os sete jurados, os quais preponderantemente são leigos, não afetos a questões jurídicas, princípios constitucionais, regras processuais etc., julgando seus pares por sua livre convicção íntima, pessoal, independente da enorme gama de princípios e regras adotados por nosso ordenamento jurídico, até porque não podem e não devem fundamentar suas decisões, externando o mérito de cada causa  de forma sigilosa.

            Nesse diapasão, temos que a utilização de teses defensivas colidentes ou incompatíveis entre si no plenário de júri, deve ser feita de modo cauteloso e hábil pelo tribuno, de maneira a não provocar ou evitar ao máximo a perplexidade no espirito dos jurados, os quais nesse aspecto podem ter uma visão um tanto retilínea, única da dinâmica dos fatos, ou seja, num primeiro instante poderão ser inflexíveis ao argumento de teses que lhes pareçam incompatíveis entre si, do tipo sim sim, não não, pão pão, queijo queijo, enfim, podem os jurados em princípio não ficar sensíveis àquela estratégia defensiva de utilizar duas ou mais teses conflitantes entre si, como, por exemplo, dizer que o acusado não atirou na vítima, mas que, caso tenha sido ele, agiu amparado pela legítima defesa! Com certeza se a argumentação não for bem elaborada pelo tribuno, todo os jurados olharão incrédulos para ele, questionando até sua sanidade ou, no melhor dos mundos, sua reputação profissional!

            Dessa forma, ainda que no plenário de júri, o conflito de teses defensivas também está superado, uma vez existir na verdade aquilo que os doutos denominam de teses defensivas aparentemente conflitantes, consequência do princípio da plenitude de defesa gizada no art. 5º, XXXVIII, “a” da CF, dispositivo assim que autoriza o tribuno a lançar mão por vezes dessa estratégia defensiva no plenário de júri, cujo destinatário final é o conselho de sentença, formado por sete cidadãos do povo, os jurados.

            Em conclusão, a adoção de teses defensivas aparentemente conflitantes ou colidentes no plenário de júri pode ser uma estratégia defensiva perfeitamente admissível, apenas com a observação de que deve ser a exceção e não a regra, isto é,  esse procedimento não pode ser banalizado, tomando o tribuno o necessário cuidado de explicar habilmente aos jurados essa aparente incompatibilidade de teses, objetivando espancar perplexidade no espirito desses julgadores populares e com isso proporcionar ao cliente e acusado mais uma chance de ser, se não absorvido, obter alguma causa especial de diminuição de pena, uma desclassificação etc., explicando convincentemente a eles, em último exemplo, que caso remotamente entendam ter sido o réu em julgamento o autor das facadas que ceifaram a vida da vítima ou ainda qualquer outra pessoa que tenha feito isso, agiu, em conformidade com outras provas dos autos, em legítima defesa ou ainda sob o domínio de violenta emoção logo em seguida à injusta provocação da vítima, como já aconteceu em inúmeros casos patrocinados por nós aqui na advocacia criminal Sanches Calvo.

Romualdo Saches Calvo Filho
Advogado criminalista, professor de direito e processo penal e presidente da APDCrim e Gestor da Sanches Calvo Advogados

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