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O que é depoimento pessoal no plenário de júri?






Tema que volta e meia vem à tona durante minhas aulas no curso do tribunal do júri, bem como por parte dos clientes que defendo no plenário de júri, é o de se saber o significado de depoimento pessoal durante os debates travados no plenário de júri, denominado juízo de mérito ou da causa, onde os sete jurados decidem o destino processual, grande parte ou às vezes o restante de vida do acusado ali submetido a julgamento, considerando que de regra as penas aí aplicadas são de longa duração, nomeadamente no caso de homicídio qualificado consumado, especialmente depois que foi banido no ano de 2008 o recurso de protesto por novo júri, abrindo uma porta larga ou mesmo porteira para a fixação de penas exageradas, exacerbadas.         

            Claro que sabemos que depoimento pessoal é aquele fornecido por uma pessoa chamada a participar, de qualquer modo, na engrenagem de uma atividade humana qualquer. Óbvio que na questão presente irei me cingir ao depoimento pessoal na seara do processo criminal, nomeadamente no plenário de júri. Mais que isso. Irei focar o depoimento pessoal das partes processuais, leia-se, acusação e defesa, ao longo dos debates orais na arena da palavra, durante uma hora e meia ou duas horas e meia na primeira fala, dependendo tratar-se de um ou mais réus em julgamento, mais uma ou duas horas de réplica e tréplica, se o caso, igualmente dizendo respeito a um ou mais acusados na mesma sessão de júri.

            Evoco de antemão o famoso brocardo latino o que não está nos autos, não está no mundo (quod non est in actis non est in mundo), querendo expressar que a acusação ou a defesa não pode utilizar como verdade probatória, constante da prova dos autos, em suas alegações escritas ou orais, fato que seja somente fruto de seu conhecimento particular, pessoal, isto é, circunstância ou situação que, ligada direta ou indiretamente com a questão de mérito – culpado ou inocente –, em discussão no plenário de júri, não foi produzida ou noticiada no respectivos autos criminais, uma vez que isso caracterizaria uma verdadeira prova nova, o inquestionável fator surpresa, eis que no processo penal, embora muito semelhante a um jogo, devem-se obedecer a certas regras, prestigiando o princípio da lealdade processual.

         Com efeito, não posso no plenário de júri, seja como promotor, seja como defensor, valer-me de uma informação privilegiada e que tenha relação direta ou indireta com a causa em discussão, cujo interesse tenho no sucesso (para condenar ou para absolver), sem que conste essa informação, portanto, anteriormente no processo, sob pena de me transformar em testemunha anômala, esdrúxula, bizarra, com ofensa inequívoca aos arts. 203 e 212 da Lei de Regência Penal, sem prejuízo de ofensa ao princípio do contraditório e da plenitude de defesa.

            Assim, durante os debates orais no plenário de júri, não pode o promotor, por exemplo, afirmar que a viúva da vítima esteve dias antes no seu gabinete informando que estava em verdadeiro estado de penúria em razão da morte de seu companheiro, estando ela, viúva, mais os filhos, passando até privação alimentar etc., ou ainda afirmar o promotor que elaborou recente pesquisa da vida pregressa do acusado, descobrindo que ele tem uma condenação por crime de roubo em outro estado, acontecendo que nenhum desses dois fatos – a viúva choramingona e a condenação por roubo do acusado –, estão demonstrados previamente nos autos criminais objetos da discussão, de maneira a produzir total surpresa no espírito da defesa, deixando-a de joelhos diante de todos, mormente diante do sete jurados, os quais não terão porque duvidar do acusador oficial que ainda tem o privilégio de se sentar à direita do juiz presidente!

            O mesmo se diga da defesa. Assisti a um júri certa feita em que o colega defensor disse aos jurados, em alto e bom som, que havia ido pessoalmente até o local do crime, verificando que realmente não existia iluminação artificial à noite, não sendo possível assim à testemunha do MP ter enxergado direito o atirador etc., produzindo cólera no promotor e incentivando a saída de fogo por suas ventas! Ora, esse fato aduzido pela defesa, já deveria ter sido afirmado por alguma testemunha ou provado nos autos, quando não haveria nenhum problema para que a defesa o mencionasse na sua fala, porém, não podendo jamais o defensor transformar-se de último momento em testemunha de um fato que somente ele conhece por diligência pessoal!

Ainda que o defensor conhecesse o fato, já também demonstrado por outra testemunha constante nos autos, ainda assim não poderia o causídico transformar-se em testemunha surpresa, reforçando fato que ele próprio soube, eis que também não deixaria de ser um depoimento pessoal, uma vez que o advogado deve atuar no processo ou como defensor ou como testemunha, mas jamais acumular as duas funções!

Por outro prisma, os depoimentos pessoais relatados pelas partes processuais ou ainda a exposição de máximas da experiência do cotidiano, informações gerais do mundo da política, economia, cultura etc., que não tenham relação direta ou indireta com a causa em discussão no plenário de júri, isto é, que não esteja umbilicalmente ligada com mérito do processo objeto da sessão de júri, podem e devem abastecer os discursos dos protagonistas da acusação e da defesa, eis que obedecem o princípio da livre argumentação. Apenas para ilustrar, o defensor pode afirmar no plenário que coloca em dúvida o depoimento da testemunha do MP que afirmou está presente no exato momento em que o acusado efetuou tiros de revólver contra a vítima, pois que a testemunha, ouvida na polícia por duas vezes, nunca afirmou isso, ou seja, é convicção pessoal do defensor, um depoimento pessoal dele, baseado em sua convicção pessoal, de que a testemunha do MP falta com a verdade, diferente, portanto, de afirmar esse mesmo defensor que soube que essa testemunha disse a terceiro que na verdade não havia presenciado o momento dos disparos, aí e agora em franco depoimento pessoal, acarretando surpresa para o promotor, constituindo-se me prova nova, o que pode ser objeto de impugnação em ata por parte do MP.

Em resumo, o depoimento pessoal das partes processuais, meramente exemplificativos ou ilustrativos, decorrentes da experiência de cada qual no dia-a-dia em sociedade, pode ser utilizado à vontade, segunda a estratégia adotada por cada tribuno, na esteira do princípio da livre argumentação. Entretanto, depoimento pessoal que coincida direta ou indiretamente com o mérito da causa (em verdade, argumento processual), deve já preexistir nos autos criminais (em depoimentos testemunhais, documentos, perícias, alegações escrita das partes etc.), uma vez que do contrário, torna-se prova nova, testemunho novo, surpreendendo deslealmente a parte contrária, dando ensejo a que o julgamento possa ser anulado.

Romualdo Saches Calvo Filho
Advogado criminalista, professor de direito e processo penal e presidente da APDCrim e Gestor da Sanches Calvo Advogados

Rômulo Augusto Sanches Calvo
Advogado criminalista e pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Mackenzie

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