A ordem tradicional na quesitação da tese de desclassificação e sua incompatibilidade com a plenitude de defesa no júri.
Como é do conhecimento daqueles que atuam no
tribunal do júri, a questão de mérito na sua segunda fase é decidida
exclusivamente pelo conselho de sentença, entidade colegiada constituída de
sete cidadãos do povo, os jurados, os quais não podem e não devem fundamentar
suas decisões, como exceção do disposto no art. 93, IX da CF, uma vez que
vigora na espécie o dispositivo também constitucional especializado do art. 5º,
XXXVIII, “b”, ou seja, toda decisão promanada do Poder Judiciário deve ser
fundamentada, salvo aquela oriunda dos jurados, eis que amparada pelo sigilo
das votações.
Nesse
quadro, a soberana decisão dos jurados é apurada sigilosamente, por meio da
votação dos denominados quesitos ou simplesmente perguntas que são formuladas
aos sete cidadãos leigos na chamada sala especial. Esses quesitos devem ser
criteriosamente elaborados pelo juiz presidente do júri, sob a fiscalização das
partes processuais – acusação e defesa –, primando a redação por clareza,
objetividade, em linguagem simples do cotidiano, na medida do possível,
considerando que os jurados de regra não têm formação jurídica, permitindo
assim a eles uma fácil compreensão na maneira de votação e com isso
proporcionando uma condenação ou absolvição verdadeiramente desejada por cada
um dos sete julgadores populares.
Quais
são as fontes e a ordem dessas perguntas ou quesitos? As fontes são a sentença
de pronúncia ou decisões que julgaram admissíveis à acusação, o interrogatório
do acusado, os debates em plenário, mais o quesito obrigatório se o jurado
absolve o acusado. A ordem básica ou elementar dessa mesma quesitação ou
questionário está ali no art. 483, nos seus incisos e parágrafos do CPP, como,
nesta ordem, a materialidade delitiva, sua autoria ou participação, se os
jurados absolvem o acusado, causas de diminuição de pena, qualificadoras e por
fim causas de aumento de pena.
Para
a finalidade deste breve artigo, vamos nos centrar no quesito relativo à
desclassificação, mencionado no art. 483, §4º do CPP, o qual, portanto, será
doravante objeto do nosso pensamento, servindo as considerações anteriores para
melhor ilustrar o nosso posicionamento.
Com
efeito, se o tribuno da defesa utilizar no plenário de júri, a título de
exemplo, as teses de desclassificação para lesões corporais e legítima defesa,
teremos que o juiz presidente, conforme a tradicional ilegal ordem exposta no
art. 483 do CPP, formulará os quesitos exatamente nessa ordem antes mencionada,
ou seja, colocará no questionário e em primeiro lugar a tese que desclassifica
a conduta do réu para a de lesões corporais, vindo em segundo lugar o quesito
obrigatório se o jurado absolve o acusado, o qual engloba toda e qualquer tese
absolutória, no caso do nosso exemplo, a legítima defesa, ou seja, a tese de
desclassificação é votada pelos jurados antes da tese de legítima defesa, o que
à primeira vista, num olhar menos atento, pareceria indiferente, não acarretando
nenhum prejuízo à defesa, uma vez que ambas as teses são objetos do
questionário e seriam a seu tempo votadas sigilosamente pelos jurados, após os
debates, na denominada sala especial (foi banida a expressão “sala secreta”), o
que, nada obstante, não é verdade.
Ora,
digamos que nesse exemplo, os jurados tivessem se convencido de que o réu agira
em legítima defesa, desejando pois absolve-lo e não simplesmente desclassificar
a conduta dele para lesões corporais, isso seria interrompido, abortado, certo
que a partir do momento que os jurados votassem que o réu tinha desejado apenas
ferir e não matar, optando assim pela tese de desclassificação colocada em
primeiro lugar, ocorreria o encerramento da votação, conforme preceituado pelo
art. 492, §1º do CPP, passando a competência a pertencer exclusivamente ao juiz
presidente do júri, restando prejudicada a apreciação pelos jurados da tese de
legítima defesa que viria no quesito seguinte, o segundo, por meio da pergunta
se o jurado absolve o acusado, ficando na alma do defensor uma sensação de
vitória, porém, com um gostinho levemente amargo de derrota, uma vez que se o
quesito correspondente à legítima defesa fosse indagado antes do quesito da
desclassificação, poderia o cliente já ter sido absolvido de plano, livrando-se
também de ser condenado por eventual crime residual (lesões corporais leves,
graves ou gravíssimas), como comumente acontece nos júris reais!
Os
que são favoráveis a esse tipo de ordem na quesitação – primeiro a tese de
desclassificação e só depois a tese de absolvição –, argumentam que na espécie
é necessário que os jurados decidam primeiro se a conduta do acusado é de fato
dolosa contra o bem jurídico vida, tentado ou consumado, só então deliberando
esses jurados se o réu agiu ou não amparado por alguma excludente de ilicitude
ou da culpabilidade, vale dizer, os jurados, segundo esse errôneo entendimento,
devem em primeiro lugar decidir se a conduta do réu é da competência do júri,
se a conduta é típica ou não de crime doloso contra a vida. Discordamos
visceralmente e somente agora depois de anos de militância no júri, desse
posicionamento, uma vez que não podemos solapar dos juízes populares, os
jurados, a possibilidade de absolver antecipadamente o réu e baseado em alguma
excludente de ilicitude ou culpabilidade, decidindo apenas em segundo momento
se ele quis, por exemplo, matar ou não a vítima, certo que essa inversão retira
do soberano veredicto popular a possibilidade de absolver de plano o acusado.
Resumo
da ópera: a plenitude de defesa, estabelecida no art. 5, XXXVIII, “a” da CF,
deve ter primazia, prevalecer sobre a competência do júri, também disposta no
mesmo art. 5º, XXXVIII, “d” da CF, enfim, no conflito entre a competência do
júri e a plenitude de defesa, deve prevalecer esta última.
Romualdo
Saches Calvo Filho
Advogado
criminalista, professor de direito e processo penal e presidente da APDCrim e Gestor da Sanches Calvo Advogados
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