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SE O ACUSADO ERA DE FATO INOCENTE, DEFENSOR PARA QUÊ ?


Boletim IBCCrim
Ano 11, n.º 136, Março 2004, pp. 04/05


Revista Literária de Direito
Ano X, n.º 50, Janeiro/Fevereiro 2004, pp. 33/34


Finalmente a reforma pontual recentemente introduzida no Decreto-Lei n.º 3.689/41 (Código de Processo Penal), trouxe alterações de há muito propugnada pela comunidade jurídica, notadamente no que toca ao interrogatório do acusado, momento magno da autodefesa. Antes tarde do que nunca.

Com efeito, a novel Lei n.º 10.792/2003 veio ao encontro dos anseios dos operadores do direito, especificamente aqueles que atuam como defensores nomeados, corrigindo-se também agora uma escancarada discriminação existente entre os acusados pobres e abastados ou remediados, visto ser agora obrigatória a presença de defensor, público ou constituído, durante o ato de interrogatório do acusado, o que, aliás, seria despiciendo, posto que já era preconizado por doutrinadores de nomeada e exsurgia de uma leitura desarmada do art. 5.º, LV, da CF.

De fato, antes dessa reforma, se o acusado, no ato do seu interrogatório, declinasse que não tinha condições econômicas de constituir defensor, o juiz devia então nomear-lhe um e, malferindo agora normas constitucionais e tratados internacionais, procedia-se mesmo assim ao interrogatório do eufemisticamente denominado hipossuficiente, isto é, mesmo que o acusado tivesse dito antes da elaboração de seu interrogatório que não dispunha de um defensor constituído por óbices econômicos, ainda assim era submetido ao calvário de seu interrogatório, nomeando-se-lhe sim um defensor, contudo, sendo este cientificado de referida nomeação apenasmente após semanas ou mês daquele interrogatório, ocasionando no defensor, para se dizer o menos, total perplexidade e frustração, eis que não lhe tinha sido permitido se fazer presente durante o exercício da autodefesa esboçada sem eira nem beira pelo pobre diabo, o qual, por resquícios das ordálias, se virou como podia, lançado que fora à própria sorte, ou melhor dizendo, à própria desgraça, exercendo o defensor nomeado assim quase que uma meia-defesa, vez que só pudera chegar depois da festa já iniciada, afinal, se o acusado era de fato inocente, defensor naquele momento para quê?

Deveras, a alteração do art. 185 do CPP veio, ainda que tardiamente, redimir a odiosa restringenda existente até então com relação aos réus pobres, certo que antes somente os acusados assistidos por defensores constituídos podiam valer-se, com plenitude real, do disposto no art. 5.º, LV e LXXIV, da Constituição Federal, bem como do art. 8.º, 2, “e”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto 678/92), e art. 14, 3, “d”, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (Decreto n.º 592/92), com o beneplácito, pasme, daqueles que deveriam propugnar ou aplicar inquestionavelmente referidas leis, já que decorrentes do Texto Maior! Todos eram iguais perante a lei, inclusive os acusados, porém, havia acusados mais iguais! Se o acusado era de fato inocente no momento do seu interrogatório, defensor para quê? Os deuses incumbir-se-iam de inocentá-lo, vez que se fosse inocente, o defensor no ato de seu interrogatório seria prescindível. No entanto, se fosse culpado, seria indigno de defensor no instante sublime de sua autodefesa!

Assim, a presença de defensor durante o exercício da autodefesa articulada pelo acusado no seu interrogatório, bem como entrevista reservada com seu defensor, é agora obrigatória, concretizando-se agora a verdadeira e não mais falaciosa interação entre defesa técnica e autodefesa, arrostando-se nulidade verificada por tal omissão:

“Recurso especial - Processual Penal - Interrogatório - Advogado. O interrogatório é ato de defesa e meio de prova. A intimação deve antecedê-lo. Ademais, o réu tem o direito de antes, aconselhar-se com o advogado ou com o defensor ad hoc. Só assim, ter-se-á explicação verbal efetivada materialmente como defesa” (STJ - REsp. 79.510 - SP, 6.ª Turma, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 13.10.1997, p. 51651).

Desta forma, os pobres acusados pobres foram agora lembrados pelo legislador infraconstitucional, mormente despertando a atenção de alguns operadores do direito que tinha o vezo de interpretar a Constituição Federal à luz do CPP e não, como é correto, o contrário.

De outra parte, a atual redação do art. 186 e seu parágrafo único do CPP, introduzida pela Lei n.º 10.792/2003, veio colocar uma pá-de-cal sobre o entendimento ainda equivocado de muitos profissionais da área jurídica acerca do direito constitucional ao silêncio, franqueado tanto ao indiciado como ao acusado, presos ou soltos, consoante disposição do art. 5.º, LXIII, da CF e, o que é mais importante, não resultando agora desse eventual direito de permanecer calado qualquer prejuízo de sua defesa, como ainda acontecia, não de forma isolada, em inúmeros interrogatórios judiciais, a despeito de o comando constitucional já ter sido suficientemente claro nesse sentido, visto que restaria no mínimo paradoxal o legislador constituinte ter dado com uma mão e o legislador ordinário ter tirado com outra, ou seja, o constituinte de 1988 assegurou ao indiciado e acusado a faculdade de permanecerem calados, quando não poderia a anterior redação do art. 186 do CPP, concluir extemporaneamente que, caso fosse exercido aquele direito, numa indisfarçável retaliação, isso redundaria em prejuízo da própria defesa do acusado, até porque, sublinhe-se, o art. 186 do CPP, na sua redação original, não foi recepcionado pela nova ordem constitucional. Deste modo, solucionada mais essa desnecessária querela por meio do atual art. 186 do CPP, muitos operadores não terão mais a infundada escusa de interpretar a Constituição Federal sob a égide do CPP, pois que é elementar que sempre fora o contrário.

A novidade indubitavelmente mais arrojada trazida por essa novel lei, no pertinente ao interrogatório do acusado, diz respeito à possibilidade de as partes (acusação e defesa), poderem formular perguntas ao acusado, por meio do juiz, durante o ato de seu interrogatório, o que era antes, sem razão plausível e por vedação legal, inadmissível ou, na melhor das hipóteses, uma mera faculdade conferida por magistrados garantistas, preocupados com a verdade real e não a formal, porquanto o que abunda não prejudica, principalmente quando essa faculdade era concedida pelo juiz a ambas as partes, exaurindo-se aí o princípio maior da ampla defesa e prestigiando-se a justiça, cujo destinatário final era a própria sociedade. Pena que isso seja só agora adotado porque virou lei.

Por outro prisma, o legislador perdeu nessa reforma operada a rara e rica oportunidade, por cochilo ou desinteresse, quiçá dentro do próprio texto do atual art. 188 do CPP que possibilita a intervenção das partes no ato do interrogatório do acusado, dirimir outra questão não menos crucial para os profissionais do direito, qual seja, a viabilidade de a delação de co-réu, quando escoteira ou isolada nos autos, ter o condão de servir como amparo para um decreto condenatório, o que se nos afigura inadmissível, eis que o co-réu delator funcionaria aí, a bem da verdade, como uma esdrúxula testemunha e, como tal, deveria ser então submetida ao crivo do contraditório, notadamente através de perguntas que lhe fossem dirigidas pelo defensor do co-réu delatado, o que não acontece na prática forense, posto que o defensor do acusado delatado, mesmo com a atual redação procedida no art. 188 do CPP, só poderá elaborar perguntas ao próprio patrocinado, através do magistrado, acerca de fatos que não restaram esclarecidos durante seu interrogatório, descartando-se assim a hipótese de o defensor elaborar perguntas ao co-réu delator, considerando ainda que os co-réus serão interrogados separadamente, ex vi do art. 189 do CPP, permanecendo assim essa mácula indene de reparo pela Lei n.º 10.792/2003, ficando, pois, intacta, sabe-se lá por mais quanto tempo, essa sementeira de nulidade por violação dos princípios da ampla defesa e do contraditório:

“Merece a delação alguma reserva, suficiente para exigir pelo menos confirmação de outras fontes de prova, ainda mais que do interrogatório não participa, nem nele intervém, a pessoa acusada” (RT, 696/394).

“Imputação de co-acusado. Não se pode aceitar como prova a imputação feita por co-réu em juízo se o imputado não estava presente neste momento, nem seu defensor, a quem se deve assegurar o direito de reperguntar” (Ap. 251.663, TACrim).

Desta forma, à semelhança do que acontecia anteriormente com o ato do interrogatório, onde as partes não podiam intervir como agora podem, trazendo esclarecimentos preciosos ao juiz, no que prejudicaria o regular andamento do processo pudesse o defensor do co-réu delatado elaborar perguntas, por meio do juiz, ao co-réu delator no ato do seu interrogatório? E mais. Essa execrável postura, a qual eiva de nulidade insanável o processo, ofende também o princípio da isonomia e mesmo o da paridade de armas processuais, considerando que a acusação poderá formular perguntas a todos os co-réus, não importando o número, sendo que o defensor só poderá dirigir perguntas ao co-réu delatado, desde que, claro, esteja patrocinando sua defesa, posto que do contrário, nem isso!

Tudo bem. Afinal, se o co-acusado delatado é de fato inocente, defensor para fazer perguntas ao co-acusado delator para quê?


Romualdo Sanches Calvo Filho
Criminalista, Professor, Autor, Tribuno do Júri e Diretor Presidente da APDCRIM

Mais informações acesse: www.sanchescalvo.com.br

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